segunda-feira, 6 de junho de 2016

Menino Maluquinho encontra a Menina dos Fósforos

Esse relato real foi o texto vencedor do 15º CONCURSO FNLIJ LEIA COMIGO! 2016  Veja aqui.


Vicente tinha cinco e Inácio, três anos completos.

Sobrinhos muito amados. Sempre leio para os dois. Sinto que eles me veem como “a tia que vem aqui ler pra gente”. Sempre pedem, mostram os livros novos, querem que eu releia os preferidos de cada um, disputam para ver quem vai escolher as histórias do dia. O texto flui sem interpretações, e eles gostam assim, se envolvem com a narrativa, entendem os enredos, percebem quando um e outro personagem ou o narrador estão falando. Sem voz esganiçada para mulher, grossa para homem ou tatibitate para criança.  Ah, eles adoram, sim, uma gargalhada de bruxa! Morrem de medo da bruxa, riem da tia.

Para o Vicente, certa vez, li o original do meu segundo livro, o Lá no meu quintal. Sentados no banco detrás do carro, ele, com três anos, atento. Não tinha ilustração nenhuma, só o texto. E, pasme, eu lia o arquivo pelo celular. No final, surpresa! “Tia, por que você fez a tia do menino tão má?”

Meu outro sobrinho, o Inácio, desde que sabe andar e tem força para carregar peso usando suas próprias mãos, vai à estante, escolhe o que quer, chega perto de mim e ordena: “Leia!”. Tem preferência pelos grossos e pesados. Uma vez, me trouxe o Código Civil todo feliz, acho que não tinha feito nem dois anos: “Leia!”. É súplica, ordem, pedido. Olha para mim apertando os olhos, sério, ansioso.

Antes mesmo de sentirem o que é ler, meus sobrinhos são leitores vorazes, interessados, valorizam as palavras. Gostam de ilustrações, mas sempre questionam quando não veem além do que o texto está dizendo. Isso é mágico!

Um dia, em uma noite em que eu lia um livro atrás do outro para eles, enquanto jantavam, Vicente avistou, na prateleira, “O Menino Maluquinho”, do Ziraldo.  Foi à estante da sala, onde os livros dos pais moram junto com os dos filhos, e trouxe o volume encapado, páginas manchadas e amareladas.

– Olha, tia! Sabia que esse livro é velho porque era do meu pai, da Tia Helena e do Tio Antonio? De quando eles eram pequenos! – disse o Vicente – Agora é nosso!

– Eu também tenho o meu guardado! – falei.

Comecei a ler:

– “Era uma vez um menino maluquinho. Tinha o olho maior do que a barriga. Tinha fogo no rabo. Tinha vento nos pés...”

Contei a ele que de tanto ler, sabia algumas partes de cor. O Ziraldo era padrinho do Clube de Leitura da minha escola e, vez em quando, ia lá ler com os alunos, eu inclusive. Disse que virei escritora por causa de gente como Ziraldo.

– Eu também sei uma parte, tia –  Vicente falou –  Já li muitas vezes esse livro! – Me mostrou: “E macaquinhos no sótão...”.

Olhei para a mãe deles e me lembrei de quando eu lia “O Menino Maluquinho” para ela. Eu, com 12 anos, minha irmãzinha com quatro. Agora os meninos dela! O mesmo exemplar do livro que os avós do pai e dos tios leram! Quanta emoção!

De repente, não consigo mais evitar e sou tomada por uma coceira no nariz e um frio na barriga. É uma das melhores sensações que se pode ter, juro.

Os meninos percebem o clima. Minha irmã ameaça rir de mim.

“Por que você está chorando, tia?”

“Ela está emocionada com o livro”, Marina fala, enquanto as minhas lágrimas pulam de galho em galho, olho em nariz, e escorrem para minha boca. Não enxugo. Não nada.

Eles não perguntam mais, investigam, admirados, a mais nova descoberta sobre os livros. Os pequenos olhos riem.  As dúvidas estão vivas, brilhantes, mas eles guardam como tesouros.

Não sei se a voz trêmula da tia os perturba, mas tento não descompassar o ritmo da leitura, consciente de que eles estão sorvendo o mistério.

Olho para eles quando o livro chega ao final, que eles já conhecem.

Repito a palavra. Feliz.

Choro com vontade. Minha irmã liberta a gargalhada. O Inácio olha para a tia. Imita neném chorando.

            Vicente guarda O Menino Maluquinho e já vai trazendo outro, escondendo o jogo, um sorriso sacizeiro que, sinceramente, quero guardar para sempre na memória cada vez que for ler para um maluquinho.

Vicente abre o livro dos contos do Andersen e pergunta:

“Tia, agora você quer ler para mim a da menina vendedora de fósforos?

E lá vai a tia, com os olhos ainda ardidos, ler a história da Menina dos Fósforos, um dos contos mais tristes recolhido e recontado por Andersen, no começo do século XX. Sai o menino feliz e entra em cena uma menina que, na noite de Natal ou de Ano Novo, perambula pelas ruas no inverno europeu, descalça, sem pai nem mãe, sem comida, tentando vender caixinhas de fósforos.

Obviamente que ninguém compra nada e a menina segue, gélida, famélica e sozinha. Depois de sofrer bastante, a menina resolve usar palitinhos de fósforo para se aquecer e, então, eis que ela começa a ver alguma cenas.

Primeiro, ela vê mesmo o interior das casas ricas ao redor, com suas imensas ceias fartas e lareiras acesas. Até que, depois de acender uma caixa inteira de fósforos e, obviamente, não se aquecer, ela tem uma visão da avó, que já morreu obviamente. E o grand finale, pobre tia leitora em prantos, é a Menina dos Fósforos reencontrando sua falecida avó e, enfim, se aquecendo junto às estrelas brilhantes do céu.


Não queria chorar, tia?

12 comentários:

  1. Maravilhoso. Que sorte que têm esses sobrinhos!!!!!!!

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  2. Flavinha, a sorte é ter sobrinhos maravilhosos!

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  3. Que lindo!!!! Amei o texto, esses meninos são mesmo sortudos!!!!

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  4. Respostas
    1. Vicente e Inácio lindos de fabulosas histórias de tia...
      Delicia de momento!
      Suas lembranças enchem de orgulho... De ter sido cúmplice de muitas histórias que viram narrativas especiais.
      Parabéns!!!

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    2. Sá, você foi meu exemplo sempre e ainda é hoje. Para você, para nós, para as histórias que vivemos juntas, juro que me faltam as palavras. Enquanto isso, as lágrimas pulam. Uma emoção e uma alegria sem fim ter tido você desde muito cedo na minha história, na minha vida.
      Mil beijos

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    1. Você sabe que sou fã sua! É uma alegria muito grande saber que você gostou!

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  6. Este comentário foi removido pelo autor.

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  7. Finalmente li! E meus olhos também encheram de lágrimas ao final! Lindo!!

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